Páginas

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Enchente em Santa Catarina

Desenho de Joseph Brüggman mostra o núcleo central da colônia de Blumenau em 1864.

Enchentes fazem parte da história de Santa Catarina, o que não deveria estar nesse contexto é o descaso do ser humano com o meio ambiente.
Em 2008 tivemos enchentes e desmoronamentos em janeiro e agora em dezembro. A estrada de acesso da RPPN Rio das Lontras está intransitável e os estragos estão por todos os lados.
A pergunta é "quando vai ser a próxima"?


História

A enchente

Carta de Hermann Blumenau, o fundador da colônia no Vale do Itajaí, descreve cheia em novembro de 1855

Em uma carta a um conselheiro do império, datada de 30 de abril de 1856, Hermann Blumenau, o fundador da cidade hoje novamente devastada pelo força das águas, fala de uma grande enchente ocorrida em novembro de 1855 no Rio Itajaí-açu (com o nível do rio subindo 15 metros em um dia e meio). A descrição da destruição e dos prejuízos causados pela cheia ocorrida em meados do século 19 guarda muitas semelhanças com a tragédia ora em curso na região. O relato, publicado entre as páginas 157 e 160 do livro Imigrantes 1748 - 1900: Viagens que descobriram Santa Catarina, de Mariléa e Raimundo Caruso, publicado pela Editora da Unisul em 2007, impressiona:

"(...) Mas não me foi dado, depois da minha partida da Corte, um momento de descanso e ócio tranqüilo. Desde a minha volta da Alemanha em 1850, parece que a constelação dos astros na hora do meu nascimento ou do meu desembarque nestas praias não foi benigna. O meu destino ou malicioso gênio me persegue incessantemente, malgrado qualquer sucesso e amargurando-me a qualquer hora de tranqüilidade e de gozo.

No ano passado, reinava nestas paragens um tempo tão ruim, que apenas se tem lembrança de outro ano tão desventuroso, desde que vieram para cá os homens brancos. A colheita do feijão em maio e das batatas inglesas em junho perderam-se inteiramente, ficando apenas a semente para a próxima plantação. Cheguei em julho no Desterro e em vez de uma viagem de seis dias, em tempos regulares, gastei um mês inteiro para chegar a esta colônia, sempre retido em caminho por chuvas e águas de monte. Este mau tempo continuou até meados de dezembro, havendo uma vez onze dias consecutivos, que não apareceu nem um só raio de sol. Ao lavrador apenas permitiu plantar a semente ao solo. O prejuízo foi grande, tanto aos colonos como á minha pessoa, que me obrigou a coadjuvá-los com adiantamentos muito maiores do que podia calcular. mas ainda tive que conservar o ânimo e a coragem perante os colonos, que às vezes queriam se desesperar e muito me acabrunhavam com as suas lamentações. Neste estado de coisas houve uma interrupção muito desagradável, em princípio de novembro, quando o engenho de serrar de um antigo colono e amigo, localizado de 6 a 8 léguas daqui no Itajahy-mirim, foi atacado pelos bugres, que mataram dois trabalhadores e saquearam inteiramente o estoque e dependências, escapando somente meu amigo pela sua extraordinária coragem e força, mas com duas flechas no corpo, que por sorte não o haviam ferido mortalmente, e o retiveram na cama durante bastante tempo.

Tendo visitado este meu amigo e querendo voltar para cá, na véspera do dia fixado da minha partida, 17 de novembro, trouxe-me lembranças funestas, pois um temporal furioso iniciou de S.SE., acompanhado de chuva diluvial, que somente cessou no dia 20. Menos de 36 horas foram suficientes para encher o rio até a altura de mais de 63 palmos do nível normal antes do início do temporal. O rio alagou quase todos os seus barrancos e as casas neles estabelecidas, causando inúmeros males e prejuízos diretos, tanto na colônia quanto em todo o seu território habitado. Não se pode avaliar os prejuízos em menos de 60 até 80 contos de réis, antes mais do que menos. Das plantações de milho, feijão e batatas em todo o rio não ficou senão apenas 30% e fui obrigado a mandar buscar destas sementes destas últimas duas em Santa Catarina (Desterro) e do Rio de Janeiro; mandioca e cana-de-açúcar ficaram afogadas e apodreceram pela menos três quartos das plantações novas e velhas. A situação foi tristíssima em toda a parte, os mantimentos subiram a um preço enorme e para não ver os colonos perecerem de fome e perderem inteiramente o fruto de anos de trabalho pela sua dispersão, não houve remédio, senão sustentá-los de novo com fortes adiantamentos, que abateram todos os meus cálculos anteriores.

Pessoalmente tive a lastimar ainda muitas outras perdas diretas: minha casa, em que moravam o meu guarda-livros e o jardineiro, construída numa bela ponta de terra, foi carregada pelo furor das águas, levando todo o seu conteúdo de livros, instrumentos, mercadorias e outras coisas de valor pecuniário, como muitos objetos de lembrança e recordação, que me foram muito caros e não serão restituídos. Não se salvou coisa alguma da casa senão algumas pesadas ferramentas, e por verdadeira sorte, uma barra de ferro, que continha pouco dinheiro. Mas todos os meus títulos de terras se foram. (...) O jardim que cingia minha casa desapareceu quase completamente e com ele meu único recreio, ao qual me havia permitido. Aliás minha maneira de viver é a mais econômica possível e às vezes até espartânica, para não me privar das despesas indispensáveis e permitir a continuação da minha empresa. Embora não sendo característica de meu temperamento, não pude deixar de chorar como uma criança, vendo a cena de destruição em toda a parte, no momento de minha chegada. Desde o meu retorno da Alemanha havia gastado bastante dinheiro e trabalho com imensa paciência e pena, para trazer a este sertão tudo o que podia alcançar de útil, interessante e belo do reino vegetal, tanto da Europa quanto do Rio e de Santa Catarina. E, depois de muitas experiências perdidas, tinha conseguido enfim aclimatar aqui muitas plantas exóticas, árvores frutíferas e os mais belos arbustos de ornamento. Somente no mês de julho trouxe do Rio de Janeiro mais de 400 novas qualidades. Havia um grande viveiro de árvores frutíferas, para distribuição aos colonos com milhares de exemplares. O jardim foi belo e florescente com as mais belas rosas etc. Refugiava-me nele, quando me sentia cansado, triste e oprimido - e quando voltei, tudo estava desaparecido, havia apenas barrancos dilacerados e uma praia de areia. Em todo o comprimento do rio e em partes muito mais expostas, não foi demolida nem uma só casa, mas a minha foi-se embora por inteira e com ela o único divertimento a que podia me permitir, foi levado como por ironia pela mão maliciosa de um mau gênio, instruído ad hoc. Além dessas perdas maiores, sofri ainda diversas perdas de alcance menor. A morte de gado, destruição de ranchos e casas de abrigo para os colonos recém-chegados, mantimentos e indiretamente a necessidade de perdoar a quase todos os meus colonos os juros de suas dívidas etc., somando-se assim os meus prejuízos em 3 e meio a 4 contos de réis, antes mais do que menos. Não posso avaliá-los em exatidão. Com os demais objetos, também desapareceram todos os meus livros de contas, pequenos créditos etc., que farão falta na mão do meu guarda-livros. Enfim, sucumbi ainda ante os abalos espirituais e morais, e diante das duras fadigas corporais, fiquei doente por algumas semanas. Em geral a minha saúde desde 18 meses está enfraquecida, negando-se muitas vezes o meu corpo à minha vontade. (...)"



O colonizador HermannBlumenau.

Fonte: Caderno Cultura - DC